domingo, 15 de maio de 2016

Ortografias do tupi

Quando uma pessoa começa a pesquisar algumas palavras em tupi, ela acaba estranhando que a mesma palavra seja escrita de formas diferentes, dependendo de quem escreveu o texto. Aprende aqui que "onça-pintada" é jaguar, ali que é iaguara, e acolá que é îaûara.

Isso é confuso, mas pode oferecer uma vantagem: cada pessoa que escreve em tupi torna-se um verdadeiro artista do idioma, ao escolher a grafia que acha mais bonita para uma certa palavra. Suponha que você queira abrir uma empresa que se chame "cerrado" (a vegetação) em língua tupi. Poderia escolher ka'atan, ka'atã, kahatan, caatã, cahatã, etc.

Por outro lado, a coexistência dessas ortografias pode ser mais tolerável, e até apreciada, quando se entende como se passa de uma a outra. Vamos analisar as possíveis maneiras de representar cada fonema do Tupi.

Uma explicação detalhada das vogais e semivogais do tupi encontra-se aqui:
http://tupibrasileiro.blogspot.com/2016/05/vogais-e-semivogais-do-tupi.html

Passemos então às consoantes:




 CONSOANTES

Para as consoantes, acho que é mais útil fazer uma lista baseada nos símbolos AFI. Adotemos a convenção de que letras entre parênteses angulares (< >) referem-se às letras como símbolos gráficos (grafemas) e que letras entre barras (/ /) referem-se a como elas soam (fonemas).
    /m/

    É representado por <m> mesmo, em todas as ortografias que conheço. Não se nota variação entre as ortografias. No entanto, em palavras aportuguesadas, o <m> é usado às vezes apenas para representar a nasalização do vogal final: nhem-nhem-nhem, guaxinim, aipim, etc. Isso é adequado quando se escreve palavras tupi em português, mas não para escrever o próprio tupi, pois, no tupi, o <m> no final das palavras não serve somente para nasalisar a vogal anterior: ele também é pronunciado como /m/ mesmo, como na expressão "a-sem" ("eu saio"), na qual o "m" deve ser pronunciado claramente, como som distinto do "e" precedente.

    Exemplo de variação de grafia:
    • falação, conversa entediante e interminável: nhem-nhem-nhem, nhẽ-nhẽ-nh, aportuguesamento do tupi nhe'eng, que significa "falar", "fala", "conversa" ou "língua/idioma".
    • aipim: aîpĩ, aipim, etc.

    /n/
    É sempre representado por <n> mesmo, em todas as ortografias que conheço. Não se nota variação entre as ortografias, embora também possa ser usado para representar nasalização da vogal precedente em grafias aportuguesadas, o que não é recomendado pela mesma razão apresentada para o /m/.

    /ŋ/

    É quase sempre representado por <ng>. Há quem proponha representá-lo por <ŋ>, o mesmo símbolo usado no AFI, mas isso é assunto para outro dia.

    Exemplo de variação de grafia:
    • vermelho: pyrang, pyraŋ
    • bonito: porang, poraŋ, porã

    /ɣ/

    Semelhante ao "g" de "gato" no português, mas é mais suave, como se fosse um "g" pronunciado com pressa, com menor articulação na garganta. É como pronunciam o "g" de "água" no espanhol.

    É representado por <g> em todas as ortografias que conheço.

    /ᵐb/

    Semelhante ao /b/, mas pré-nasalizado. É como se fosse começássemos dizendo "m", mas terminássemos dizendo "b". É um som preparado como "m", mas liberado como "b".

    É quase sempre representado por <mb>, justamente porque se parece com pronunciar /m/ seguido de /b/. Porém, alguns consideram que esse fonema é apenas uma variação (um alofone) de /m/, e representam-no simplesmente por <m>.


    Exemplo de variação de grafia:
    • coisa: mba'e, mae
     /ⁿd/

    Semelhante ao /d/, mas pré-nasalizado.

    É quase sempre representado por <nd>. Alguns consideram que esse fonema é apenas uma variação (um alofone) de /n/, e representam-no simplesmente por <n>.

    Exemplo de variação de grafia:
    • tu, você: nde, ne

     /ᵑɡ/

    Semelhante ao /ɣ/, mas pré-nasalizado.

    É quase sempre representado por <ng>. Alguns consideram que esse fonema é apenas uma variação (um alofone) de /ŋ/. Em grafias aportuguesadas, pode ser representado por <ngu> antes de <e>, <i> e <y>, para indicar que não se trata do som do "j" de "jaca" (em Português). Por exemplo, mongetá ("conversar") não deve ser pronunciado como "monjetá" (em Português), mas sim como "monguetá" (em português), por isso alguns preferem escrever dessa última maneira mesmo em tupi.

    Exemplo de variação de grafia:
    • vermelho: pyranga, pyraŋa
    • conversar: mongetá, moguetá, moŋetá
    /p/

    Como o "p" do português.

    É representado por <p> mesmo.

    /t/

    Como o "t" do português.

    É representado por <t> mesmo.
    /k/

    Como o "c" de "casa" do Português.

    É representado por <k> na Ortografia Padrão: ka, ke, ki, ko, ku, ky. No entanto, as grafias mais antigas adotavam o padrão do português: ca, que, qui, co, cu, quy. Atualmente, evita-se escrever assim para usar uma só letra para o fonema e para evitar a dúvida frequente de não se saber se o "u" de "que" e "qui" é pronunciado ou não. Essa dúvida é comum para o nome Itaquera, por exemplo, nome de localidade em São Paulo de origem tupi. Na Ortografia Padrão, esse nome seria escrito itakera ("pedra que dorme", de "itá" [pedra] e "kera" [dormente]), sem possibilidade para tal dúvida.


    Exemplo de variação de grafia:
    • "pedra dormente": itakera, itaquera
    • "mato branco": ka'atinga, ca'atinga

    /kw/

    Como o "qu" de "quadra" do português.
    É representado por <kû> na Ortografia Padrão, mas alguns também usam <kw>. Em grafias antigas, aportuguesadas, usavam qua/cua/coa, qüe/cue/coe, qüi/cui/coi, quo/cuo, quy/cuy/coy.

    Exemplo de variação de grafia:
    • quati: kûati, kwati, kuati, quati, coati
    • saber: kûab, quab, kwab, kuab, cuab, coab

    /β/

    Fica entre o "b" e o "v" do Português. É um "b" no qual os lábios não se juntam totalmente.

    É quase sempre representado por <b> no tupi. No guarani, é representado por <v>, razão pela qual existem palavras que são pronunciadas iguais em tupi e em guarani, mas se diferenciam na escrita: yby/yvy (terra), abá/avá (pessoa). Há também quem o represente por <w>.

    Nas palavras portuguesas de origem tupi, esse fonema transformou-se ora em "b" ora em "v". O nome da fruta "gabiroba, por exemplo, aceita todas estas variações: guabiroba, guabirova, guavirova, gavirova, gabiroba, guavirova.

    Exemplo de variação de grafia:
    • pessoa (ser humano): abá, avá, awá 
    • gabiroba: gûabiroba, guavirova, ûawirowa

    /s/

    O "s" do Tupi é sempre pronunciado como /s/ mesmo, nunca como /z/, pois não existe o som "z" de "zebra" no Tupi.

    A Ortografia Padrão adota <s> para /s/ em qualquer posição, mesmo entre vogais. O sufixo "guaçu" (usado no português com sentido aumentativo) é escrito como gûasu no tupi. Em grafias aportuguesadas, prefere-se usar <ss> entre vogais (guassu, passoca) ou <ç> (guaçu, paçoca). O cedilha é dispensado quando <ç> é seguido de <e>, <i> ou <y>, de modo que as sílabas seriam ça, ce, ci, ço, çu, cy. Obviamente, a vantagem desse tipo de grafia é a similaridade com o português, mas é muito mais simples usar apenas sa, se, si, so, su, sy.

    Exemplo de variação de grafia:
    • grande: gûasu, guaçu, guassu 
    • paçoca: pasoka, passoka, paçoca

    /ʃ/

    O fonema /ʃ/ corresponde ao som do "x" na palavra "xadrez".

    É representado por <x> mesmo, tanto em grafias "nativas" quanto em grafias aportuguesadas. No guarani paraguaio, esse fonema é representado por <ch>, e pode haver quem use esse dígrafo no tupi brasileiro também.

    O povo conhecido como "Tupinambás de Olivença" têm estudado o tupi antigo como forma de voltarem a falar um idioma indígena próximo ao que falavam originalmente. Eles organizaram uma convenção para decidir que ortografia utilizariam (http://www.uesb.br/ppglin/dissertacoes/2011/Clara-Carolina.pdf). Consideraram as possibilidades "ch", "sh" e "x", mas escolheram o "x" mesmo.

    Exemplo de variação de grafia:
    • eu, me, mim:, ché, shé

    /ɾ/

    O fonema /ɾ/ corresponde ao som do "r" na palavra "arara". No Tupi, não existe o som do "rr" de "errado".

    É sempre representado por <r> mesmo. Mesmo quando ocorre no começo da palavra, deve ser pronunciado como o "r" de "arara", nunca como o "r" de "rato" (o som de "dois erres").

    /ʔ/

    O fonema /ʔ/ aparece no português apenas em expressões como "hã-hã" (significando "não", pronúncia [AFI]: /ʔɐ̃ɐ̃/), onde é o som representado  pelo "h". Também aparece na expressão em inglês "uh-oh" (pronúncia [AFI]: /ˈʔʌʔoʊ/), dita quando se acaba de fazer algo errado, atualmente popular no Brasil.

    É representado tradicionalmente por um apóstrofo <'>. Também pode ser representado por <h> ou simplesmente não ser representado por letra nenhuma.

    No guarani, existe esse mesmo fonema representado por apóstrofo, e também um outro representado por "h" (o mesmo "h" do inglês). Talvez seja uma boa escolha manter o apóstrofo pela proximidade do tupi com o guarani.

    O uso do apóstrofo para esse fonema pode acarretar uma pequena confusão porque o apóstrofo também é utilizado às vezes para representar omissão de sons. Por exemplo, na expressão "Ta îamongetá!" ("Que conversemos! Vamos conversar!"), o "a" de "Ta" é omitido, e a expressão fica "T'îamongetá!", mas nesse caso, o apóstrofo apenas marca a omissão da letra "a".

    Entretanto, o fonema /ʔ/, no tupi, aparece somente no início da palavra ou entre vogais, e a omissão de sons, ao contrário, é geralmente no final das palavras ou depois de consoantes, de modo que normalmente é possível saber se o apóstrofo representa o fonema ou a omissão de sons.

    Exemplo de variação de grafia:
    • coisa: mba'e, mbahe, mbae 
    • professor: mbo'esara, mbohesara, mboesara
    • mato, mata, floresta: ka'a, kaha, kaa  
    • caatinga, "mata branca": ka'atinga, kahatinga, kaatinga
    • cerrado, "mato duro/bravo/fechado": ka'atã, kahatã, kaat

     SEMIVOGAIS

    As semivogais são explicadas na página indicado no início deste texto, mas vamos incluí-las aqui novamente, no mesmo formato, para termos uma lista completa. Semivogais são às vezes classificadas como consoantes também. Como o próprio nome "consoante" indica, uma consoante é algo que "soa com", "soa junto com uma vogal", ou seja, deve juntar-se a uma vogal para formar uma sílaba. Nesse sentido, uma semivogal é de fato uma consoante. Listemo-nas:

    /w/

    O fonema /w/ corresponde ao som do "u" em "água" ou do "l" em "Brasil" (na pronúncia brasileira mais comum).

    É representado por <û> ou <gû> na Ortografia Padrão, mas alguns preferem <w> ou <u>, opcionalmente precedidos de "g": <gw> ou  <gu>. Escolher <u> significa não distinguir /w/ de /u/ na grafia.

    A colocação do "g" antes do "û" ocorre por um motivo de pronúncia: quando precede uma vogal, o fonema /w/ é pronunciado como se tivesse um sutil /g/ antes de si. Alguns acreditam que seja desnecessário representar essa característica e escrevem simplesmente "û" sempre, como îaûara (jaguar) em vez de îagûará.

    Exemplo de variação de grafia:
    • jaguar (onça-pintada ou onça-preta, animal da espécie Panthera onca): îaûara, jaguara, jagwara, jawa
    • gabiroba (espécie de fruta): gûabiroba, ûabiroba, wabiroba
    /j/

    O fonema /j/ corresponde ao som do "i" em "ioiô" ou do "y" em "yes".

    Na Ortografia Padrão, é representado por <î> quando não é nasalizado ou, opcionalmente, por <nh> quando é nasalizado. A nasalização ocorre por proximidade a outro fonema nasal. Alguns preferem <j> ou <i>. Escolher <j> significa não distinguir /j/ de /i/ na grafia.

    Exemplo de variação de grafia:
    • nós, "a gente" (incluindo a pessoa que fala): îandé, jandé, nhandé
    • fala, conversa, língua: îe'eng, ie'eng, nhe'eng, je'eng (também nheem, nhem, nheém, ieém, jeém, nhe'ẽ, ie'ẽ, etc.)
    /ɰ/

    O fonema /ɰ/ não tem equivalência no português, e talvez seja o mais difícil de ser pronunciado pelos lusófonos. Para produzi-lo, tente falar o "u" de "água" mas com os lábios no formato do "i" de "ioiô".

    Na Ortografia Padrão, é representado por <ŷ>. Alguns preferem <yy> ou <y>. Escolher <y> significa não distinguir /ɰ/ de /ɨ/ na grafia.

    Exemplo de variação de grafia:
    • varão, macho, homem: apŷaba, apyyaba, apyaba

     VOGAIS

    Para deixar a lista completa, vamos listar também as vogais:

    /a/

    O fonema /a/ é como o "a" de "arara". É representado por <a>.
      /ɛ/

    O fonema /ɛ/ é como o "é" do português. É representado por <e>.

    /i/

    O fonema /i/ é como o "i" de "iguana". É representado por <i>. 

    /ɔ/

    O fonema /ɔ/ é como o "ó" do português. É representado por <o>. 

    /u/

    O fonema /ɔ/ é como o "u" de "uva". É representado por <u>. 


    /ɨ/

    O fonema /ɨ/ é como o "u" de "uva" pronunciado sem arredondamento dos lábios. Dizem que é um "u" com lábios de "i". 

    É representado por <y> na Ortografia Padrão. Também é representado por <ü> ou <î> em outros sistemas ortográficos.

    Em palavras aportuguesadas, muitas vezes não se distingue esse fonema do /i/. Por exemplo, Itatiba vem de itá (pedra) e tyba (partícula que marca o coletivo, podendo ser traduzida como "conjunto", "ajuntamento", "abundância"), "conjunto de pedras", "pedreira". No entanto, em outras palavras, o "y" transformou-se em "u", como em Caraguatatuba, que vem de "caraguatá" (tipo de planta) e tyba, significando então "ajuntamento de caraguatás".

    /ã/

    Como o /a/, porém nasalizado. Representado por <ã>. Também é representado por <a> quando precedido de som nasal ("an", "am").

    O "ã" do tupi é um pouco mais aberto que o "ã" do Português.

    Explico:

    No português, existem dois fonemas "a". Se você repetir a palavra "baba" várias vezes, notará que o segundo "a" é mais fechado que o primeiro, soando algo como "â". O "ã" do português corresponde à nasalização desse "a" mais fechado. Por outro lado, no tupi, espera-se que se nasalize um "a" mais aberto.
    /ɛ̃/

    Como o /ɛ/, porém nasalizado. Representado por <ẽ>. Também é representado por <e> quando precedido de som nasal ("en", "em").

    O "" do tupi é um pouco mais aberto que o "en" ou o "em" do português. No português, o "E nasal" corresponde a uma nasalização do "ê" (E fechado), mas, no tupi, o "e nasal" é uma nasalização do "é" (E aberto).

    /ĩ/

    Como o /i/, porém nasalizado. Representado por <ĩ>. Também é representado por <i> quando precedido de som nasal ("in", "im").

    /ɔ̃/

    Como o /ɔ/, porém nasalizado. Representado por <ɔ̃>. Também é representado por <o> quando precedido de som nasal ("on", "om").

    O "õ" do tupi é um pouco mais aberto que o "õ" do português. No português, o "O nasal" corresponde a uma nasalização do "ô" (O fechado), mas, no tupi, o "e nasal" é uma nasalização do "ó" (O aberto).

    /ũ/

    Como o /u/, porém nasalizado. Representado por <ũ>. Também é representado por <u> quando precedido de som nasal ("un", "um").

    /ɨ̃/

    Como o /ɨ/ porém nasalizado. Representado por <ỹ>. Também é representado por <y> quando precedido de som nasal ("yn", "ym").



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